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FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL - Renovação da participação política e a centralidade dos territórios
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- Criado em 10/07/2024
Foto: Mikael Blomkvist/Pexels
A mobilização da população nos territórios é fundamental para ativar novos processos de participação política para além das eleições. O voto nas eleições é o principal meio de participação nas democracias representativas. As eleições são momentos importantes em que a população avalia as políticas públicas e os políticos eleitos, além de ter a possibilidade de escolher novas lideranças políticas. Entretanto, é sempre bom lembrar que o direito de participação dos cidadãos não se encerra com o período eleitoral, entre um mandato e outro, os políticos tomam muitas decisões importantes que impactam diretamente as condições de vida da população e, por isso mesmo, em uma democracia forte e saudável, existem espaços institucionais que possibilitem a escuta e deliberação dos cidadãos durante o mandato dos governantes.
A estrutura de participação política no Brasil tem crescido desde a redemocratização, fazendo com que o país se tornasse uma referência no que se refere à inovação democrática. A partir da promulgação da Constituição de 1988, diversos espaços de participação foram formados nas três esferas governamentais federal, estadual e municipal. As principais institucionalidades participativas criadas foram conselhos gestores de políticas públicas, orçamentos participativos (OPs), Conferências Nacionais, entre outras formas de participação, com o propósito geral de aproximar os cidadãos do poder público e ampliar a voz da população no cotidiano da gestão pública.
Entretanto, passado mais de 30 anos da construção desses espaços de participação, vários desafios e limites têm sido apontados pelos pesquisadores e analistas políticos, dentre os quais a burocratização excessiva dos espaços participativos reproduzindo o modelo do sistema partidário, a predominância dos políticos profissionais e militantes experientes nos processos deliberativos e a baixa incorporação das demandas e propostas elaboradas pela sociedade civil pelos governos instituídos.
A partir dos anos 2000, nota-se um esforço tanto do poder público, quanto da sociedade civil na busca de inovar os processos participativos por meio de arranjos institucionais que considerem as dinâmicas territorializadas, a construção coletiva de diagnósticos locais e valorização das lideranças comunitárias.
No caso do poder público, a partir de 2003, tem ganhado destaque um conjunto de políticas públicas que prevê a participação da população atendida e organizações sociais na própria execução da política pública, desde a elaboração da agenda até a implementação das ações, por vezes mediante o repasse de recursos públicos para organizações da sociedade civil. As cientistas políticas Ana Claudia Teixeira e Luciana Tatagiba (2021)* têm denominado essas políticas de Programas Associativos que se caracterizam
- (i) pela ênfase dos processos participativos de base territorial,
- (ii) o papel das organizações da sociedade civil como mediadores do acesso às políticas públicas, e
- (iii) repasse de recursos públicos para entidades da sociedade civil administrar parte da política.
Diversas organizações da sociedade civil também têm proposto inovações no modelo de participação política. A construção de Planos de Bairros tem aparecido como uma aposta de organizações da sociedade civil como um caminho de renovação do processo participativo.
O Plano de Bairro é um instrumento de planejamento local, realizado com ampla participação dos moradores do Bairro e tem como propósito reforçar os laços comunitários, levantar as propostas de solução para desafios coletivos dos territórios e ampliar o sentimento de pertencimento ao território. As organizações de sociedade civil têm um papel importante de apoiar a realização de alguns Planos de Bairros e principalmente de sistematizar e divulgar a experiência local para um público mais ampliado.
O Instituto Alana participou da construção do Plano de Bairro do Jardim Pantanal e a Fundação Tide Setubal do Plano de Bairro do Jardim Lapena (mais detalhe abaixo), os dois bairros localizados na zona leste da cidade de São Paulo. A Casa Fluminense, organização da sociedade civil localizada no Rio de Janeiro, tem realizado a construção participativa de agendas de políticas públicas em várias comunidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro com o propósito de documentar as principais demandas das comunidades e monitorar junto ao poder público o desenvolvimento das políticas públicas.
A experiência da Fundação Tide Setubal no Jardim Lapena: participação e o compromisso com o protagonismo dos moradores e lideranças locais
A Fundação Tide Setubal tem um histórico de construção de iniciativas formativas, de intervenção territorial e mobilização social em parceria com os moradores do Jardim Lapena visando a melhoria do bairro, a promoção de espaço formativos e de acesso à conhecimento e aos direitos de cidadania e a ampliação dos canais de diálogo entre os moradores do Jardim Lapena e o poder público.
Com mais de uma década de atuação na zona leste de São Paulo, a Fundação aposta na ideia de que para se realizar uma política de desenvolvimento territorial das periferias e realizar ações de enfrentamento às desigualdades sociais e urbanas, é necessário considerar as diferentes dinâmicas territoriais, ou seja, “o território importa” quando se trata de atuação com a periferia e não para as periferias. Nesse contexto, um dos pilares da atuação no Jardim Lapena é o estímulo a processos participativos locais que sejam vivos do ponto de vista da mobilização e engajamento dos moradores e efetivos do ponto de vista da incidência em políticas públicas.
O caminho de construção de um processo participativo informado e propositivo é longo, podendo configurar diversos formatos institucionais. No caso do trabalho da Fundação no Jardim Lapena, o trabalho de diagnóstico e ativação territorial se desenvolveu em intenso diálogo com os moradores do bairro, universidades, poder público e parceiros da sociedade civil e tendo como base as seguintes premissas:
- i. identificação as demandas sociais dos territórios por meio de informações públicas e pesquisas produzidas junto aos moradores,
- ii. reconhecimento das lideranças e do histórico de luta nos territórios,
- iii. reconstrução do processo de constituição dos territórios,
- iv. criação de canais efetivos de escutas e deliberação da população e, fundamentalmente,
- v. compreensão de que os moradores dos territórios devem ser os protagonistas das transformações políticas ocorridas nos territórios.
“O documento com as propostas do Plano de Bairro do Jardim Lapena está pronto, a luta pela implementação das ações está acontecendo e as interfaces socioestatais tem papel preponderante nisso, ainda mais em um território no qual a fisiologia já foi a relação determinante. […] [Com o Plano de Bairro], a prática política deixa de ser o lugar para tirar vantagem e passa a ser o lugar da construção por um território de direitos.” (p. 240)
Outra iniciativa exitosa de participação política no território do Jardim Lapena teve início em meio a pandemia de Covid-19, em 2020, quando moradoras e lideranças comunitárias do bairro se organizaram para distribuir, com o apoio da equipe do Galpão ZL, máscaras, álcool em gel, cestas básicas, kits de limpezas, materiais escolares e, principalmente, circular informações confiáveis sobre formas de proteção e autocuidado contra os efeitos do coronavírus. Dessa mobilização inicial, organizou-se um coletivo de mais de 100 moradoras chamado de Guardiãs do Jardim Lapena que realiza ações sociais no território como encaminhamentos para os serviços sociais da região, doações de alimentos e insumos domésticos para famílias em situação de emergência, cursos diversos, dentre outras atividades.
As Guardiãs do Jardim Lapena se tornaram referências importantes no bairro e atuam como mediadoras de diversas questões e conflitos, com destaque para os casos de violência doméstica. A experiência das Guardiãs enfatiza a centralidade da questão de gênero para se pensar a participação política dos territórios periferias. O ativismo construído por essas lideranças traz para o centro do debate a dimensão do cuidado e dos desafios da vida cotidiana como pautas organizadoras da luta política e a identificação com o território e a solidariedade entre mulheres como fontes mobilizadoras. O depoimento da guardiã Marcia Silva ilustra esse processo de construção de uma subjetividade política desse coletivo:
“Elas fizeram de mim uma mulher forte e sábia, pois convivo com mulheres que se tornaram inspirações para mim. São pessoas periféricas e lutadoras, que me mostraram como a vida pode ter um novo sentido. Hoje, eu não ando abaixo de ninguém: eu nasci para andar ao lado.”***
No ano de 2023, as Guardiãs do Território inauguraram um espaço de atendimento no coração do Jardim Lapena, denominado Espaço Cuidar Guardiãs, ali elas oferecem aulas de crochê, alfabetização e letramento, assessoria jurídica, orientação sobre os serviços público da região, além de um espaço seguro de escuta e acolhimento aos moradores do bairro.
Mais uma estratégia de mobilização territorial e de participação política em curso no Jardim Lapena é a articulação entre lideranças do bairro e os profissionais do Galpão ZL por meio da constituição de Grupos de Trabalho (GTs) temáticos para incidência específicas no território. A proposta é constituir e manter ativo espaços compartilhados de planejamento e incidência onde as lideranças locais atuantes em diferentes frentes e a equipe do Galpão ZL possam construir um plano de trabalho anual em que as lideranças tenham capacidade de decisão e orçamento para realizações de ações pontuais no território tendo como base as áreas de influência estratégicas definidas pelo Plano de Bairro e pela Teoria da Mudança do Jardim Lapena (realizada pelo Insper, Fundação Tide Setubal e Itaú Social).
O Galpão ZL funciona como um ponto de referência para a organização dos GTs, organizando reuniões mensais de compartilhamento das ações, fomentando com recurso financeiro as ações de cada grupo , promovendo em colaborações atividades e oferecendo a infraestrutura do Galpão para as lideranças se organizarem. Atualmente existem sete GTs, com três membros cada grupo: Meio Ambiente e Sustentabilidade, Cultura, Economia Solidária, Infraestrutura Urbana, Imigrantes, Juventude e Reurbanização do Baixo Lapena.
Contra o argumento de que vivemos na era da apatia política, de que a população tem ojeriza ao campo político, percebemos, a partir da atuação no Jardim Lapena, que um olhar mais sensível para a dinâmica dos territórios, o reconhecimento das lideranças locais, a construção de espaços formativos de novas lideranças, principalmente a partir de ações para juventude, o reconhecimento das desigualdade de gênero e raça como dispositivos de silenciamentos e apagamento de lideranças políticas e, principalmente, o compromisso genuíno em favorecer o protagonismo político dos moradores dos territórios, tudo isso pode ser um caminho para fomentar uma participação política cada vez mais intensa e qualificada e que impacte diretamente na melhoria das condições de vida dos moradores do bairro. A população quer participar, os moradores são os maiores conhecedores sobre as principais demandas e carências do bairro, os coletivos e lideranças periféricas tem historicamente construído soluções políticas a partir da realidade local, o que falta são espaços apropriados de participação, mecanismos de encaminhamento das demandas dos territórios para o poder público e, por fim, governos sensíveis às demandas dos territórios periféricos.
Referências bibliográficas
*Luciana Tatagiba e Ana Claudia Teixeira. Movimentos Sociais e Política Pública. São Paulo: Editora Unesp. 2021.
**Andrelissa Ruiz e Marcelo Almeida. Políticas Públicas e Participação Social: o Caso do Plano de Bairro do Jardim Lapenna como um Caminho da Democracia para um Território de Direitos. In: Diamantino Alves Correia Pereira. (Org.). Mudança Social e Participação Política. São Paulo: Annablume, 2018.
***Amauri Eugenio Jr. Mais do que guardiãs: lideres e fontes de inspiração para o bairro.
Por Uvanderson Vitor da Silva, coordenador do Programa Democracia e Cidadania Ativa da Fundação Tide Setubal
Fonte: Fundação Tide Setubal